Lembro-me de quando era pequena e minha
infância era recheada de histórias e “causos” narrados pela minha mãe e pelas
professoras que me embalaram no Jardim de Infância do instituto de Educação
Professor Aldo Muylaert.
Desde
sempre fui tragada pelo reino do faz de conta. Desde sempre as palavras foram
minha vitrine mais visitada, meu castigo esperado, minha viagem à Terra do
Nunca.
Era
muito comum construir histórias, transformar bonecas em personagens vivos,
envolver todas as pessoas possíveis nesse que era meu delírio escolhido.
Minhas bonecas tinham roupas pra tudo.
Minha mãe as costurava à mão. Elas tinham nome, filiação, endereço... Tinham
uma história que eu construía com data de nascimento e signo. Uma poeta já
habitava em mim sem que eu, sequer, desse conta disso.
Nunca
fui das exatas. Isso me fazia detestar as aulas de física, química e
matemática. Aprontava. Sempre tinha um experimento novo para realizar na sala
de aula, pois sabia que isso deixaria os professores enlouquecidos.
E aí acontecia o que eles NUNCA
desconfiaram... Eu adorava ser “castigada”. Isso mesmo. CASTIGADA. Eles olhavam
para mim- parece que estou vendo-apontavam para a porta e chamava o coordenador
de turno, “seu” Amilar. Ele vinha com aquelas mãos imensas, unhas sujas, e
segurava meu braço murmurando: “não tem jeito”, e me conduzia até a biblioteca.
Eu era a pessoa mais feliz do mundo! Quantas letras, quantas palavras, quantas frases,
quantas histórias!
Li
muitos livros tecendo essas traquinagens. Fui absolutamente feliz nesse meu
castigo. Tornei-me um ser apaixonado pelas letras. Para mim, letras são
bordados, são pinturas, e são vivas!
Nessa
época eu já estava no “ginásio” e podia escolher entre aula de Educação para o
Lar (rsrsr), Técnicas Comerciais ou participar do Orfeão. Sem demora pra
escolher, sem perguntar aos meus pais, não hesitei em adentrar àquele lugar
mágico que era o auditório (Senhor! Esqueci o nome!). Pela primeira vez vi um
piano de cauda. Pela primeira vez vi aquela que desenhou, definitivamente, o
que eu queria fazer na vida. A minha frente estava uma mulher baixinha, com os
cabelos muito finos e raros parecendo ter uma espécie de enchimento. Ela era
uma personagem. Regia com o corpo, com os olhos com a alma. Ela estava
ensaiando um tributo a Vinicius de Moraes. Eu estava sentada assistindo aquilo
como se fosse explodir. As palavras... as palavras saíam do papel e estavam
reverberando naquele espaço. A palavra ganhara corpo, ganhara melodia. A
palavra foi transformada em TEATRO.
Ela
começou a reger a canção “Eu sei que vou te amar” do Tom Jobim. Chorei. Ela
perguntou se alguém sabia o soneto de Fidelidade do “Poetinha”. Ninguém se
moveu. Foi assim que vi, pela vez primeira, tapetes vermelhos se estenderem
diante de mim. Com toda emoção e fé cênica - hoje eu sei que é isso - eu fiquei
de pé e disse liricamente comovida:
“De tudo, ao meu amor serei atento antes
E com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu
canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure”
Fiz
parte do Orfeão até me formar no curso de Normalista. Depois, na FAFIC,
participei do Coral. O canto coral nunca mais foi o mesmo. Transformávamos
letras de música em texto, construíamos diálogos com refrões, enfim, dávamos à
literatura o valor de seu papel que não é o de ser somente disciplina, mas de
ser arte.
Sendo
assim, a pretensão é analisar um texto literário tendo como foco seu eixo
dramático. Para isso escolhi as Cinco cartas Portuguesas de Soror Mariana
Alcoforado. São epístolas com teor mais teatral que pude ver na vida. As
palavras saltam das páginas e ganham vida diante do desespero de uma mulher que
é vista como santa, por ser uma abadessa. Que sendo freira é rapidamente
estereotipada como a virgem Maria, mas que no fundo fora uma mulher que pecou
como Eva. Que se deu ao desfrute de “comer” do fruto proibido. A partir daí foi
criada a primeira imagem negativa da mulher, pois ela leva Adão ao pecado. O
fruto foi comido pelos dois, mas foi sobre a primeira mulher que fora lançado o
estigma da negatividade. As cartas revelam uma condição feminina no século XVII
que muito vemos em pleno século XXI.
A
minha pretensão é fazer a análise do discurso dessas cartas para o palco,
alinhavando cada uma delas com letras de musica do século XXI para que o
espetáculo tenha uma discussão sobre a questão de gênero.
Fosse
um padre que recebesse em sua clausura uma mulher, teria a igreja feito uma
grande reforma em suas leis? Só a mulher é direcionada para ser casta?
Quero conduzir o trabalho defendendo a
arte da palavra, defendendo a literatura como linguagem artística, rica em
sentidos e sonoridades, rica, sobretudo em imagens que podem estar
dramaturgicamente em cena.
Os
sentimentos que permeiam as cartas são explícitos: saudade, abandono, medo,
tristeza, solidão, paixão, carne, súplica, desespero, esperança.
Essa temática do amor
não correspondido, do abandono não é inerente a um determinado período, mas
manifestado em diversas épocas, cantado e interpretado nos palcos e bares da
vida. Não há preocupação em imprimir características literárias em suas
epistolas. A preocupação é a de se fazer ouvir, a preocupação é gritar por esse
amor, é ser o objeto de desejo para aquele homem a quem se entregou.Que saibamos nos construir e nos desconstruir apesar dos equívocos sobre a potencialidade dos gêneros quanto os seus afetos.