Era um dia como outro qualquer. Era um dia para ser como outro dia do passado ou do futuro, mas no presente ele me chegou com ua mensagem de celular de um moço que não conheço pessoalmente. Pediu que interpretasse seu poema no Fest Campos de Poesia Falada. Gosto de palavras. Gosto de palavras que gritam e que silenciam tudo. Gosto de palavras que emocionam, que transformam, que nos fazem pensar, que nos eternizam. Gostei das palavras do moço, e decidi que iria interpretar o seu poema tão cheio de imagens e de surpresas.
Sempre que leio um poema, conto, prosa ou bula de remédio, na minha mente vem a galope o esteriótipo da personagem. Fico imaginando como anda, fala, pensa, encanta. Quando me deparei com o poema "Dor de Rosa", não foi difernte. Mas algo de mais especial e revelador me tomou por inteiro. Saber que fora escrito por um homem me deixou ainda mais curiosa e aí, inconscientemente, acabei fazendo uma viagem ao interior dessa alma tão feminina. Fui arrebatada pela menina que existe nas palavras do moço, fui tomada de tamanha emoção que quando disse o poema não era mais eu quem estava lá. O grande barato da interpretação é poder ser aquilo que não se é, mas que poderia ter sido. De repente, eu era a menina que nunca havia usado um vestido de chita, aquela que não conhecera os contornos de um corpo escolhido, aquela cuja infância fora roubada, que o o lhar fora congelado e que a alma perdeu o caminho...
Não poderia descrever o tamnho de minha emoção nem o quanto é interessante ver/sentir a reação das pessoas que embarcaram comigo no navio das palavras.
Escrever não é fácil. Transformar a escrita do outro num jogo de sensações também não, mas se render as fonemas, as frases, aos tons que tem um poema é ajoelhar diante do Deus que existe em todo lugar e se sentir facilmente levada pelas dificuldades. Cumpri meu ofício uma vez mais. Fiz o melhor de mim e agradeço ao moço por ter me confiado sua escrita e me oportunizado um encontro sublime com suas palavras.
DOR DE ROSA
Minha infância
nunca descobriu
os mistérios que
habitam o fundo do rio.
Sempre me disseram
que o vestido encurta
depois que a gente
sente a flor do maracujá brotar
no meio do sexo,
disfarçando a paixão
que aqui a gente
confunde com o menor dos gestos.
Quando virei mulher,
o sangue pingou
pelo terreiro até o
sol cicatrizar dezembro.
Não colhi brincos
da natureza
porque nunca me
ensinaram a lembrar.
Esquecer é um
catecismo diário.
De manhã emudece
minhas palavras com farelos de pão
De noite, silencia
qualquer pergunta
com a flor branca e
roxa que só conheci estampada
nos vestidos de
chita que papai nunca trouxe.
Nunca ouvi qualquer
história de pescador
Nem acredito muito
no milagre dos peixes
O que ouço é uma
voz rouca
Arranhando o ouvido
da menina que não sabe existir.
Por aqui dizem ser
coisas do além, sentimentos que vagam
pelo coração da
mata. Eu mesma, não sei dizer.
Sempre guardei as
histórias do folclore
dentro da minha
caixa de meias.
Uma porque só sinto
aquilo que me toca.
Outra porque nunca
fui eu, depois que papai
entupido de
aguardente me ninou como
se eu fosse uma
lenda.
Não posso imaginar
as frestas que o mundo deixa
porque só prezo
pelas distinções de escuro.
Deduzo a luz pelo
toque que não sei contar,
pelo romance que não
segredei aos antigos
e pelo coração que
pulsa por dentro, aposenta
cirandas e não é
meu.
Faltou o canto da
sereia,
o contorno do corpo
que não provei,
os chumaços de
algodão para estancar o vermelho
que escorreu pelas
pernas bambas de tão finas.
Só senti a
existência dele quando a barriga começou a crescer
e nenhum tom de rosa
apareceu no meio do nada do rio.
Quando a água
baixou lá pelas bandas de mim,
o sol não deu
trégua sequer nas vontades de antes.
A memória eu guardo
no ventre do encontro das águas
O corpo eu já não
sei
Só imagino cores
para as variações que correm igarapé afora.
Podem imaginar o que
for
Só sei que o boto
tinha a barba grossa,
a mão pesada e o
bafo de cigarro igualzinho ao do meu pai.
Pseudônimo:
Clave de luz